Friday, January 11, 2008

O Favor

Estava ficando velho, sabia que não lhe restaria muito tempo. Aquilo era muito importante, não conseguia ver sua vida se acabar sem ver algo tão grande se perder para sempre. Pensar nisso doía ainda mais seu coração, que pulsava agora preguiçoso, enferrujado, esperando a hora certa para parar totalmente. E a hora certa não chegaria até que decidisse o que fazer. Se lembrou de seu grande amigo, talvez o melhor que já tivera em toda a vida. Se conheceram moleques e, desde então, apesar de casamentos, descasamentos, brigas e filhos, não se distanciaram e puderam manter uma bela amizade, baseada na confiança e em segredos compartilhados. Mas esse era um segredo maior. Não sabia se o pior era a humilhação de ter de contar a difícil missão que deveria realizar e que estava chegando ao fim da vida e não conseguira fazê-lo, tendo de assumir que precisaria do amigo para concluir tal coisa ou se era morrer na desonra de não tê-la concluído. Convidou-o para um chope. O amigo, como sempre o fez em todos esses anos, se atrasou por mais de uma hora. Chegou correndo, se preocupava demais com a saúde do outro, se sentindo culpado por tê-lo feito esperar.



- Como vai, Zé? Como tá o coração?

- Vai bem. Nenhuma desilusão amorosa ultimamente desde a separação- fazia uma piadinha. Queria mudar o assunto, não havia tempo pra falar de sua doença. - Tiago, preciso da sua ajuda. Tenho guardado um segredo há anos. Preciso que me faça um grande favor. É o seguinte...


E cochichou no ouvido do amigo que o ouvia com uma cara que qualquer um que a observasse, diria estar ele sendo ameaçado de morte, ou, no mínimo, ouvindo uma piada de muito mau-gosto. A cada pausa do que o primeiro dizia, Tiago fazia apenas um sinal de que concordava com a cabeça, preservando sempre os olhos arregalados e a expressão aterrorizada. Saíram de lá calados, apenas se abraçaram e tomaram os sentidos diferentes em direção aos seus respectivos carros.
O Zé chegou em casa. Como sempre, trocou sua roupa por uma que lhe deixasse mais à vontade. Se deitou na poltrona mais confortável. Aliás, finalmente ela lhe parecia realmente de grande conforto, pois só se sentara nela antes pra pensar naquilo que tanto lhe preocupava e que transferira ao amigo. Finalmente se livrara da ansiedade, dos calafrios, do estresse que o dever lhe causava. Suas nádegas sentiam aquela poltrona como se fosse a primeira vez. E não foram só as nádegas; seu coração, como um sistema de engrenagens, aliviado, resolveu descansar interrompendo todo o trabalho de seu corpo. O descanso foi fatal e Zé pôde então ir em paz.
Tiago soube da morte do Zé no dia seguinte. Claro que ficou abalado, mas havia algo maior que não apenas o abalava como o aterrorizava e arrepiava até o último cabelo do nariz. Era como se estivesse na mente de seu amigo pouco antes de seu falecimento, pois sabia exatamente o alívio que devia ser morrer e se livrar de uma tarefa como aquela. Não conseguia mais dormir e, quando o fazia, acordava suado e tremendo. Levantava, tomava um copo d'água, mas não tinha mais sono. Via o sol nascer pensando, planejando, esquematizando passo a passo o que faria.
Aquilo tomou conta de tudo o que ele era. Largou sua namorada, pois o estresse, como todos sabem, acaba com qualquer relação, mesmo aquelas mais "Sandy & Junior" possíveis. Começou a beber com freqüência, aquilo parecia ajudá-lo a esquecer no início, mas sempre se dava conta de que, após algum tempo e umas doses a mais, a bebida o fazia ficar mais sensível com tudo o que estava passando e ele se pegava por diversas vezes chorando feito uma criança e "por que eu, merda! Maldito Zé!".
Em um belo dia, anotou em um pequeno papel o grande favor que Zé havia lhe pedido, para que, caso sua fraqueza o impedisse de realizar algo de tão grandes dimensões, alguém pudesse ler o que ali havia registrado e pudesse se incumbir da tarefa. Parecia ter adivinhado o que o destino lhe preparara. Acabou morrendo de acidente de carro, tendo sido atropelado por culpa de sua distração, causada não dessa vez pela preocupação usual, mas por estar atrasado para ir trabalhar mesmo (como eu havia dito, ele nunca fora muito pontual) e não ter se preocupado em olhar para os dois lados da rua. Quando do acidente, os bombeiros não chegaram a tempo. Procuraram apenas alguma coisa que identificasse aquele senhor coberto por uma lona preta. Encontraram sua carteira,e, dentro dela, aquele papel importante com o grande favor escrito em letras manuscritas e bem legíveis, todo dobrado. Na borda, havia escrito apenas "Caso algo aconteça comigo, leia este papel, mas não diga, EM HIPÓTESE ALGUMA, a ninguém o que está escrito ali. Tome como sua vida. Obrigada, o falecido".
O bombeiro Carlos abriu o papel. Leu-o em silêncio. Ao terminar, soltou apenas uma exclamação. Algo escrito ali parecia tê-lo assustado muito mais do que o fez o acidente de carro que matou o dono do bilhete ou todos os acidentes que havia presenciado até este dia. Sabia que sua rotina ia mudar, havia agora uma preocupação que tiraria seu sono, era mais do que um dever, aquela missão estaria agora presente nos seus dias e dela seria feita toda a sua vida. E, de olhos arregalados, apenas tomou o caminho de casa, conformado com o que o aguardava e com a certeza de que não podia falhar.

Thursday, January 10, 2008

Tempo di sognare un po'...

A minha paixão pela Itália era algo tênue, novo, incipiente, até o dia em que descobri que há uma possibilidade enorme que eu vá, ao menos uma vez na vida, matar a minha vontade de conhecer um outro país. Depois de tentativas frustradas de ir pra Disney, Bariloche e Inglaterra, agora, tenho um certo poder maior de decidir e de me tornar acessível esse tipo de viagem. Isso porque, antes, era o dinheiro dos meus pais que falava mais alto, ou melhor, mais baixo, e me escapava das mãos todos os sonhos com o esqui, o Big-Ben e o Mickey. Agora, descobri que posso fazer um intercâmbio pela Universidade, sendo necessário quase somente o meu esforço e um grande IRA (índice de rendimento acadêmico).
Eu, portanto, sabendo mais ou menos disso, passei o semestre inteiro preocupada com minhas menções, visando sempre ao sonho de mangiare una pizza in Italia!
Mas, esses dias, toda a minha ânsia de ir à Itália tem se tornado uma obsessão! Eu durmo pensando nisso e acordo assustada, pois meu vizinho na Itália tentou me matar em meus sonhos. Eu almoço imaginando que, em breve, estarei me enchendo de massas neste mesmo horário, na península tão distante. Escovo os dentes e imagino como serão as pastas de dente por lá. "E como se chama 'pasta de dente'? 'Pasta' é 'massa' por ali, preciso urgentemente saber disso. Falando nisso, preciso perguntar, o mais rápido possível, à minha professora como se diz 'absorvente' em italiano. Meu Deus, é impossível que eu fique seis meses por lá e não precise de um desses. Tá, é biologicamente possível, mas pra mim, é impensável. Devo, ainda, saber como se diz 'quanto é a escovinha? E quanto é o pé e a mão? Dá pra fazer uma francesinha?'. Amanhã vou atrás de saber isso".
E assim, nem mesmo o fim da pasta e o desgaste dos meus dentes são suficientes pra me fazerem parar com esses pensamentos.
Durante o dia, vou listando o que eu tenho de fazer para realizar meu sonho: manter o IRA alto; ter atividades extra-curriculares, pois elas vão contar muito na seleção dos alunos pro intercâmbio; estudar, pelo menos, 20 palavras novas por semana; aprender a comer de boca fechada.
E junto de tudo isso, começo a pensar em como tudo vai acontecer, desde o dia em que eu puser os meus pés no aeroporto italiano. Penso nos meus vizinhos, na melhor amiga que eu vou fazer por lá, nas festas, nas danças. Me vejo ensinando o samba (mesmo sem saber de modo algum sambar) aos meus novos amigos e me vejo discutindo futebol com os tetra-campeões, só porque, quando no exterior, o Brasil é o melhor país do mundo e só dá motivo pra orgulho.
E, quando penso no namorado que não tenho aqui, lembro (olhe bem, LEMBRO) do meu gato, o homem da minha vida que me beija loucamente e sussurra no meu ouvido um "sei bellissima, amore mio. Sei soltanto mia. Non posso pensare di non averti accanto". E daí, penso na despedida, na minha volta ao Brasil, nos olhos do meu amor marejados de lágrimas, a minha melhor amiga pedindo pra que eu a telefone todos os dias, meu vizinho, que depois de um tempo resolveu virar meu amigo deixando seu preconceito por latino-americanos de lado, e todas aquelas pessoas especiais que conheci nesses 6 meses maravilhosos. E, dias depois (na minha imaginação, claro), me vejo no Brasil de novo, na hora do almoço, comendo meu bom e tradicional prato feito de arroz, feijão e bife. Me vejo escovando os dentes, como o faço agora e descrevi anteriormente. Mas, mais do que isso, já me vejo sonhando em quando, como e o que farei para poder rever mais uma vez la mia meravigliosa Italia que tão boas lembranças me deixou...

Wednesday, January 02, 2008



Reflexões de ano novo


Faltavam alguns minutos para a meia-noite e, como de costume, fazíamos a nossa oração em família. Foi quando minha mãe resolveu inovar; pegou uma almofada no sofá e iniciou a explicação do que seria feito com aquilo. Segundo ela, teríamos, cada um, de pegar o objeto e imaginá-lo como sendo o ano que se passou, e transferir a ele todo o nosso sentimento em relação aos fatos que deixávamos para trás. Valia de tudo: carinhos, porradas, cuspe, beijinhos, qualquer coisa! Começamos então a tal dinâmica. Não demorou para chegar a minha vez; logo que segurei a almofada, pensei em tudo que havia me acontecido no ano de 2007. Reprovações no vestibular, uma decepção cá, outra decepção acolá, não hesitei e tratei-a com a maior indiferença possível, tornando evidente o desgosto que senti pelo ano do qual me despedia com um aparente alívio. Terminada a brincadeira, começamos a rezar, fosse em voz alta, fosse cada um fazendo para si sua própria retrospectiva. Voltei a pensar no ano passado. Reprovações, eu as tive, mas com o grande mérito de ter passado extremamente perto da aprovação. Tive também decepções simples, nada muito grave que me trouxesse intensa infelicidade.E comecei a me lembrar de minha família, de como o ano foi lindo! As bodas de prata de meus pais, todos que eu amo com saúde, o carinho intenso e amor incomensurável que temos uns pelos outros, o apoio que todos me deram no que costumo chamar de "fracassos acadêmicos". E meus amigos, então! Velhas amizades se fortalecendo, novas amizades surgindo, amizades perdidas sendo RECUPERADAS! E fazer 18 anos, imagine, não tem preço! Foram tempos de muita dança, muita festa, muito estudo, muita felicidade! Não foi, definitivamente, um ano ruim, muito pelo contrário! Ganhei maturidade para persistir nos meus ideais, experiência em determinados assuntos pessoais e muitas pequenas alegrias!!!.. É, terminamos a oração, o jantar, brincamos bastante e todos foram dormir. Menos eu. Havia ainda algo que eu precisava muito fazer. E assim, quando todos já dormiam tranquilos, peguei a almofada que outrora desprezei e dei-lhe um grande beijo, mas um beijo com todo o sentimento de gratidão que existia no meu coração...